Uma nova medicina baseada no implante de microchips, sensores e marcapassos de última geração começa a tratar doenças como apneia do sono, dor crônica, anorexia e até insuficiência cardíaca.
Uma modalidade inédita de tratamento que nada tem a ver com os remédios tradicionais – nem na forma de administração nem no mecanismo de atuação – ganha espaço na medicina. São os medicamentos bioeletrônicos, dispositivos implantados no corpo ou colocados sobre a pele, na forma de adesivos. Sua finalidade é restaurar ou equilibrar a emissão de sinais elétricos no organismo de forma a reparar funções perdidas e recuperar a saúde. Assim, em vez de ingerir pílulas, o paciente se trata com implantes, eletrodos e marcapassos de última geração. A principal vantagem é não precisar tomar remédios para sempre, no caso de males crônicos, e não sofrer efeitos colaterais típicos das medicações.
O princípio básico de ação desses dispositivos sustenta-se no fato de que os órgãos e funções do corpo são regulados por circuitos de neurônios que interagem entre si por meio de impulsos elétricos. A ideia é interferir nessa troca de estímulos. Há recursos para tratar males como o refluxo gastroesofágico e a apneia do sono (leia mais no quadro abaixo). Os benefícios estão melhorando a rotina de muita gente. “Voltei a ter qualidade de vida”, diz Mercedes Gonçalves, 57 anos, de São Paulo. Ela foi uma das primeiras do País a se submeter a uma cirurgia para implantar, nas nádegas, um dispositivo semelhante a um marcapasso para controlar a grave incontinência urinária que a atormentou por sete anos. “Não saía mais de casa. Agora não tomo mais remédios e até viajo.” O urologista Luís Rios, de São Paulo, um dos pioneiros no uso do artefato no País, é um entusiasta do método. “Essa medicina que restaura funções sem colocar o paciente em risco ou deixá-lo dependente de medicação é o futuro”, diz.
SUCESSO
Tatiane trocou remédios contra a dor crônica por eletrodo
Em Santos, em São Paulo, a rotina da engenheira Tatiane Serapião, 35 anos, mudou depois que ela passou a usar um implante contra dores advindas de uma fratura na bacia e de lesões no nervo ciático. O artefato está implantado no abdome e conectado à medula espinhal, por onde passam ramais nervosos que levam os sinais de dor ao cérebro. “Tinha tentado de tudo para aliviar a dor e queria engravidar, mas não podia por causa dos remédios”, diz ela, que completou oito meses de gestação. “O uso dos neuroestimuladores é uma conquista para controlar dores crônicas”, atesta Cláudio Corrêa, coordenador do Centro da Dor do Hospital 9 de Julho (SP).
Especialista no controle da dor, o médico Kleber Duarte, de São Paulo, comemora os avanços na área. “Um dos aprimoramentos é a criação de dispositivos que disparam apenas quando necessário e calculam a intensidade do estímulo para que a dor seja aliviada”, explica. No campo da neurologia, a implantação de eletrodos no cérebro tem sido usada no tratamento de doenças como a depressão, a epilepsia e a anorexia. Recentemente, investigadores da University Health Network, no Canadá, mostraram resultados da técnica contra a anorexia grave e resistente a outros tratamentos. Após o implante de eletrodos em áreas cerebrais relacionadas ao controle do humor, três de seis mulheres que participaram do ensaio engordaram e mostravam melhoras em seu estado psicológico.
Outras novidades estão para chegar. “Nos próximos três a cinco anos haverá um aumento de dispositivos inteligentes na área da saúde”, afirma o engenheiro Jonny Doin, da Grid Vortex, companhia especializada na criação de sistemas de transmissão de dados. Na opinião do engenheiro Marcelo Zuffo, que lidera o Centro Interdisciplinar em Tecnologias Interativas da Universidade de São Paulo, os avanços resultam de algo que se torna cada vez mais comum na ciência: a reunião de áreas distintas do conhecimento. “É um universo que está nascendo da convergência de informações de campos como a eletrônica, a computação e a biologia”, afirma. O grupo de Zuffo pesquisa meios de produzir sensores cada vez menores e flexíveis para serem introduzidos no corpo.
Um indicador de que esse é um caminho próspero foi a criação de um fundo de financiamento de pesquisa patrocinado pela indústria farmacêutica GlaxoSmithKline. A empresa destinou US$ 50 milhões para financiar 20 projetos na área. Por meio da colaboração com cientistas de todo o mundo, o laboratório vai mapear de que modo doenças como pressão alta e diabetes responderão à nova abordagem terapêutica. “Queremos estabelecer o espectro de enfermidades passíveis de intervenção com os remédios bioeletrônicos”, disse à ISTOÉ Kris Famm, vice-presidente de pesquisa em bioeletrônica da empresa. O primeiro acordo foi feito com a americana SetPoint Medical para avaliar o desempenho de um implante para reduzir inflamações. Em testes com pacientes de artrite reumatoide, os resultados foram semelhantes aos obtidos com remédios.
O casamento entre a eletrônica e a biologia está gerando a produção de sensores que captam sinais do corpo. A novidade começa a ser usada em situações que vão do fitness à cirurgia. Em parceria com a Reebok, a companhia americana MC10 lançou um indicador de impacto durante atividades esportivas. Fixado a um gorro, o sensor exibe uma luz verde, se a pancada teve intensidade média, ou vermelha, se foi forte o bastante para causar concussões. Neste caso, a sugestão é que o atleta receba cuidados imediatos.
Cofundada pelo cientista John Rogers, da Universidade de Illinois (EUA), a MC10 tem outros produtos com promessa de chegar ao mercado em breve. Um deles é um adesivo para controlar a hidratação, informando a quem treina corrida, por exemplo, quanto de líquido é preciso repor. Outro verifica a temperatura corporal e os batimentos cardíacos. Eles são feitos de filmes plásticos e microcircuitos e entregam os dados ao celular. Rogers também anunciou a criação de um tipo de lente de contato dotada de sensores para monitorar os níveis de glicose em pacientes com diabetes. Todos foram testados em humanos. “Estamos unindo a sofisticação da moderna eletrônica à tecnologia de sensores para que se tornem tolerados pelo corpo humano. É um novo caminho”, disse Rogers à ISTOÉ.
A mais nova descoberta nesse campo da bioeletrônica flexível foi anunciada na última semana por Igor Efimov, da Universidade de Washington (EUA). Com a colaboração de John Rogers, ele criou um dispositivo que poderá transformar o tratamento e a prevenção de doenças cardíacas. Trata-se de uma membrana feita com silicone, em impressora 3-D, para ser colocada sobre a superfície do epicárdio, a camada externa da parede do coração. Seus sensores medem a temperatura da região, entre outros marcadores, e disparam pulsos de eletricidade para regular os batimentos em casos de arritmia. “Por ser implantável, este dispositivo permitirá que os médicos monitorem as funções vitais em diferentes órgãos e intervenham quando necessário”, disse Efimov.
As ferramentas cirúrgicas são mais um alvo da nova tecnologia. A empresa americana Tekscan, por exemplo, desenvolveu sensores para serem colados às pinças usadas pelos médicos na laparoscopia. Eles fornecem outros dados além da imagem obtida por câmeras – entre eles a temperatura do tecido e o fluxo sanguíneo na região. Também é dessa companhia uma espécie de luva repleta de sensores para captar o movimento e a tensão de cada estrutura das mãos. “Ela ajuda na fisioterapia, na reabilitação, e também detecta sobrecarga em estruturas que podem vir a sofrer lesões”, disse à ISTOÉ Mark Lowe, da Tekscan.
CRIAÇÃO
O brasileiro Zuffo (acima) e o americano Rogers, pioneiro na área,
lideram projetos inovadores da medicina bioeletrônica
No setor de instrumentos médicos, estuda-se o desempenho de cateteres com balão inflável na ponta acrescido de sensores. Esse tipo de ferramenta é usado para diagnosticar entupimentos e eliminá-los, tratar certas formas de arritmia e remodelar válvulas cardíacas. Hoje, eles são guiados por pequenas câmeras. Os sensores, porém, permitirão aos cirurgiões obter dados mais precisos da região e direcionar melhor o procedimento. A pesquisa está sendo feita em parceria com a Medtronic, companhia do setor de tecnologia médica, e a estimativa de lançamento é de dois anos.
No Ames Research Center, laboratório ligado à Nasa, a agência aeroespacial americana, o cientista David Loftus trabalha na criação de uma cápsula que responderá a estímulos elétricos para liberar, de forma controlada, compostos específicos. A tal cápsula também poderá carregar células que, em contato com o organismo, produzirão as substâncias desejadas. “Espero que um dia esses dispositivos sejam usados pelos astronautas em missões espaciais e tenham aplicações terrestres”, disse Loftus à ISTOÉ.
Fotos: Kelsen Fernandes/Ag. Istoé, Felipe Gabriel; Michael J. Granse
Fonte: http://www.istoe.com.br/